"O Grande Massacre de Gatos"
Por volta de 1730, operários com péssimas condições de trabalho em uma oficina gráfica da rua Saint-Séverin, em Paris, promoveram um massacre contra os gatos da vizinhança. Por quê? O patrão e a patroa, os “burgueses”, adoravam os bichos, em especial la grise, a gata da patroa. Os animais atrapalhavam o sono dos aprendizes que, além de dormirem em locais precários, tinham que acordar bem cedo, antes da chegada dos primeiros oficiais, enquanto os burgueses dormiam tranquilamente.
Então eles decidiram, como forma de vingança, imitar os miados dos gatos no telhado da casa do mestre durante a noite toda, provocando a fúria dele. Isso fez com que o mesmo, supersticioso que era, acreditasse que o incômodo era obra de alguma feitiçeira, tendo os gatos fortes significados demoníacos, e então ordenou aos aprendizes que matassem os gatos, exceto la grise, a gata que a patroa tanto gostava, ordem que foi desobedecida, sendo ela a primeira vítima. Mas a partir daí aparecem inúmeras perguntas como: o porquê de se matar justamente os gatos, ou o que esses gatos simbolizavam para aqueles operários. Darnton dá várias explicações para essas perguntas. O massacre dos gatos estaria relacionada ao incômodo que eles causavam aos operários, já que os mesmos costumavam miar próximo aos aposentos deles. Por outro lado os gatos também simbolizavam uma distanciação social entre os burgueses e os trabalhadores, distanciamento que, segundo os relatos de Contat, não existia anteriormente, e uma das mudanças culturais era exatamente a “mania” adquirida pelos mestres de criar gatos como animais de estimação, enquanto que os operários costumavam torturá-los em seus ritos tradicionais.
Os gatos, no início da época moderna, adquirem vários significados. São acusados de feitiçaria, de participar dos sabás das bruxas, de terem ligação com o demônio, e mesmo fora desse aspecto mais obscuro, eles eram vistos como seres misteriosos e dotados de poderes sobrenaturais, como a cura de doenças. Também eram usados em festas da comunidade em geral e de artesãos, os charivaris, era nesses eventos que eram torturados; eram aleijados, queimados, estrangulados e mortos. Logo, não havia nada de extraordinário na matança de gatos para os operários, porque para os patrões eles deveriam ser venerados e bem tratados.
Outro significado atribuído aos gatos, e este aqui talvez seja o principal, é a ligação deles com o sexo. Expressões para os felinos e para a genitália feminina se confundem e eram usadas como obscenidades desde aí, como le chat, la chatte, le minet. No texto escrito por Contat, um dos aprendizes da gráfica e quem escreve sobre esse episódio vinte anos depois do ocorrido, a gata é identificada como la grise, sua chatte favorite. Ou seja, matar a gata da patroa correspondia a estuprá-la, e por consequência insultar o patrão com uma imagem risível: a do corno.
Porém, a principal relação do massacre de gatos é com a vontade que tinham de humilhar seus patrões, indignados que estavam com a forma que eram tratados. Isso pode ser visto muito bem no “julgamento” feito pelos aprendizes aos gatos. Nele os trabalhadores projetavam nos animais a figura do seu mestre e de sua esposa, ambos condenados à forca.
Outra questão que pode ser levantada é a instabilidade a qual os artesãos estavam submetidos, visto que durante a segunda metade do século XVII, as gráficas, com a ajuda do governo, extinguiram a maioria das oficinas de pequeno porte e com isso uma oligarquia de mestres assumiu o controle da indústria, impedindo antigos aprendizes de subirem ao cargo de mestre. Esses homens, os mestres, estavam cada vez mais dispostos a contratar um tipo de empregado que colocaria em xeque o trabalho dos assalariados, os alloués, que eram homens sem qualificação alguma usados apenas para cumprir serviço. Com essa nova característica das gráficas vários conflitos vão aparecer pelo medo da substituição por outro empregado, principalmente conflitos entre empregados e patrões, o massacre de gatos é um exemplo disso. E não apenas conflitos desta natureza, mas principalmente o conflito de culturas, a dos burgueses e a dos operários.
Robert Danrton busca situar o homem comum do século XVIII, até então pouco familiar, deixando de lado a linha de pesquisa da época, baseando-se mais na história cultural misturando o seu olhar como historiador com o de antropólogo, tornando-se então um “historiador etnográfico”, onde o importante não era saber o que o indivíduo pensava, mas sim como ele pensava. Ele tenta entender a graça por trás do massacre, e chega à conclusão de que os operários vêem a graça no fato de que esse é um momento de virada de jogo, onde eles é que humilhavam seus patrões, e o melhor, sem sofrer conseqüências, visto que estes não entenderam os significados por trás do episódio.
Texto de Robert Darnton
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